Thursday, February 05, 2009

A despedida

Por Mino Carta

Quando escolhi o Brasil como lugar definitivo da minha vida, optei também pelo jornalismo.
Existe uma indissolúvel conexão entre as duas atitudes.
E explico.
Até o golpe de 1964, fui jornalista com séria dedicação profissional.
De alguma forma mercenário, no entanto.
Diga-se que, depois da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, quando a pressão militar só permitiu a posse de João Goulart, sucessor constitucional, ao forçar a adoção do parlamentarismo, eu ficara de sobreaviso.
Mas o golpe se deu também sobre a minha alma e motivou minhas escolhas definitivas.
Entendi que fosse meu dever praticar o jornalismo em um país submetido à ditadura imposta pela classe dominante com a inestimável ajuda dos seus gendarmes, e que se uma única, escassa linha da minha escrita sobrasse para o futuro, teria conseguido conferir um mínimo de importância à minha profissão.
Faço questão de sublinhar que não agia desta maneira pelo Brasil, e sim por mim mesmo.
Quarenta e cinco anos depois, vivo uma quadra de extremo desalento, em contraposição às grandes esperanças alimentadas durante a ditadura.
Logo frustradas pela rejeição da emenda das eleições diretas após uma campanha a favor que honra o povo brasileiro.
Fez-se, pelo contrário, a conciliação das elites, nos exatos moldes previamente desenhados pelo general Golbery do Couto e Silva.
A aposta do Merlin do Planalto estava certa e vale até hoje.
Fez-se a conciliação para eleger Fernando Collor e para derrubá-lo.
E novamente para eleger Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998.
A Carta aos Brasileiros assinada por Lula foi uma tentativa de aparar arestas antes do pleito de 2002, aparentemente mal-sucedida, por ter convencido um número bastante diminuto de privilegiados.
A conciliação veio depois da posse, a despeito do ódio de classe que até o momento cega a mídia.
A mim, que estou de olhos escancarados, a Carta convenceu por considerá-la sincera.
Naquela época, não cansei de definir Lula como um conciliador desde os tempos da liderança sindical.
No governo, contudo, ele foi muito além das minhas expectativas.
Ou, por outra: deu para me decepcionar progressivamente.
O balanço de seis anos de Lula no poder não é animador, no meu entendimento.
A política econômica privilegiou os mais ricos e deu aos mais pobres uma esmola.
Há quem diga: já é alguma coisa.
Respondo: é pouco, é uma migalha a cair da mesa de um banquete farto além da conta.
O desequilíbrio é monstruoso.
Na política ambiental abriu a porta aos transgênicos, cuidou mal da Amazônia, dispensou Marina Silva, admirável figura, para entregar o posto a um senhorzinho tão esvoaçante quanto seus coletes.
A política social pela enésima vez sequer esboçou um plano de reforma agrária e enfraqueceu os sindicatos.
E quanto ao poder político?
O Congresso acaba de eleger para a presidência do Senado José Sarney, senhor feudal do estado mais atrasado da Federação, estrategista da derrubada da emenda das diretas-já e mesmo assim, graças ao humor negro dos fados, presidente da República por cinco anos.
Outro que foi para o trono, no caso da Câmara, é Michel Temer, um ex-progressista capaz de optar vigorosamente pelo fisiologismo.
Reconstitui-se o "centrão" velho de guerra, uma das obras-primas da conciliação tradicional.
Enquanto isso, o Brasil ainda divide com Serra Leoa e Nigéria a primazia mundial da má distribuição de renda, exporta commodities, 55 mil brasileiros morrem assassinados todo ano, 5% ganham de 800 reais pra cima.
E 2009 promete ser bem pior que pretendiam os economistas do governo.
Houve, e há, justificadíssima grita quanto às privatizações processadas no governo FHC.
E que dizer do BNDES que empresta aos bilionários para armar a BrOi, a qual (é uma modesta previsão) acabará nas mãos de ouro de Carlos Slim?
E que dizer da compra pelo governo de 49% das ações do Banco Votorantim à beira da falência?
Em um ponto houve melhoras sensíveis, na política exterior.
E aí vem o caso Battisti.
Até este serve ao propósito da conciliação, a despeito das críticas bem fundamentadas da mídia.
O ministro Tarso Genro disse em Belém que a favor da extradição de Battisti se alinham os defensores da anistia aos torturadores da ditadura, "com exceção de Mino Carta".
Agradeço a referência, observo, porém, que o ministro cai em clamorosa contradição.
Não foi ele quem, em rompante que beira a sátira volteriana, sugeriu à Itália baixar uma lei da anistia igual àquela assinada no Brasil pelo ditador de plantão?
Talvez o ministro não saiba que enquanto no Brasil vigorou o Terror de Estado, na Itália houve uma gravíssima e fracassada tentativa terrorista de desestabilizar um Estado democrático de Direito estabelecido desde o fim do fascismo.
Se eu digo que o Festival de Besteira assola o País desde a época de Stanislaw Ponte Preta, e que se o ministro merece o Oscar do Febeapá, ao menos o professor Dalmo Dallari faz jus a uma citação, recebo as mensagens ferozes e as agressivas admoestações de centenas de patriotas.
Pois não é bobagem (sou condescendente) dizer que na Itália dos anos 70 estava no poder um governo de extrema-direita, ou que se Battisti for extraditado, de volta ao seu país corre até risco de vida?
Ou afirmar que Mestre e Milão, norte da península, são muito distantes, quando entre as duas cidades há menos de 200 quilômetros?
Sem contar que, como me levam a observar vários frequentadores do meu blog, Battisti foi o autor do homicídio de Mestre e apenas o idealizador daquele de Milão.
Está claro que o ministro Tarso não erra ao dizer que a mídia nativa está sempre a agredir o governo de Lula, e contra esta forma desvairada de preconceito CartaCapital tem se manifestado com frequência.
Ocorre que, ao referir-se à extradição negada a mídia está certa, antes de mais nada em função dos motivos alegados, a exibir ao mundo ignorância, falta de sensibilidade diplomática e irresponsabilidade política, ao afrontar um estado democrático amigo.
De todo modo, Battisti transcende sua personalidade de "assassino em estado puro", segundo um grande magistrado como o italiano Armando Spataro, para se prestar a uma operação que visa compactar o PT e empolgar um certo gênero de patriotas canarinhos.
Isto tudo me leva a uma conclusão desoladora, embora saiba de muitíssimos leitores generosos e fiéis: minha crença no jornalismo faliu.
Em matéria de furo n'água, produzi a Fossa de Mindanao, iludi-me demais, mea culpa.
Donde tomo as seguintes decisões: despeço-me deste blog e, por ora, calo-me em CartaCapital.
Creio que a revista ainda precise de minha longa experiência profissional, completa 60 anos no fim de 2009.
Eu confiei muito em Lula, por quem alimento amizade e afeto.
Entendo que o Brasil perde com ele uma oportunidade única e insisto em um ponto já levantado neste espaço: o próximo presidente da República não será um ex-metalúrgico com quem o povo identifica-se automaticamente.
Conforme demonstra aliás o índice de aprovação do presidente, cada vez mais dilatado.
Vai sobrar-me tempo para escrever um livro sobre o Brasil.
Talvez não ache editor, pouco importa, vou escrevê-lo de qualquer forma, quem sabe venha a ser premiado pela publicação póstuma.

Jornal BLEH!

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